Era uma conversa sobre família, daquelas que começam despretensiosamente. Ou, nem tanto, pois pretensão havia. Nada mais natural do que conhecer as origens de um sujeito para lhe dar a honra da amizade, afinal, conhecimento vem antes de confiança. E tem que ser a passos largos. Quem as coloca lado a lado ou inverte esta ordem natural corre o risco de frustrar-se.
E sobre família há muito o que dizer, desde a identificação dos seus membros até os hábitos, costumes e a forma como se leva a vida neste núcleo tão seleto. Pois o que é este grupo de indivíduos, senão uma seleção de pessoas? Falo do ponto de vista genético, condição considerada quando diante de perguntas familiares. Quem é teu pai? Sua mãe? Quantos irmãos você tem?
É fácil responder citando nomes ou enumerando cabeças. Nesta conversa, porém, exigia-se mais. Era preciso buscar informações mais precisas, contar histórias e destrinchar a convivência com os seus. Democraticamente, de forma bem organizada, cada qual se pronunciava na tribuna invisível daquele círculo de futuros amigos. O discurso tinha sua importância, mas não era motivo para as vassouras e baldes estacionarem nas mãos, a limpeza prosseguia. Pois bem, eu ainda não disse, mas tudo isso acontecia em meio a uma faxina rotineira na agenda de jovens seminaristas.
Quando chegou a vez deste que vos escreve, tomei a palavra e a vassoura, aquela para iniciar o meu discurso, esta para esfregar o chão. E entre pausas e esfregadas, falei o que eu poderia falar sobre minha família. Já me preparava para deixar aquela tribuna quando veio uma réplica.
“Mas e o seu pai?”.
“Ué, o que tem o meu pai?”.
“Seu pai, fala do seu pai”.
“Meus pais são separados”.
“Mas fala algo que você saiba sobre seu pai”.
“Meu pai foi morar longe”.
“Mas alguma coisa você deve saber sobre ele”.
“Meus pais se separaram quando era bem pequeno”.
“Ah, deve ter alguma coisa que você saiba sobre ele”.
“Não sei, não”.
“Faz uma forcinha, cara, você deve saber”.
Eu sabia. “Meu pai tinha uma mula!”.
Silêncio. O rangido do atrito da vassoura com o piso cessou. A torneira que fornecia água para limpeza se fechou. Olhares confusos se cruzaram. E sobre mim caíram as contestações. Mas não havia o que contestar. Este era o fato, meu pai tinha uma mula, era a lembrança mais significativa e verdadeira que eu tinha naquele momento.
Anos mais tarde, tive a oportunidade de estar com alguns destes ex-companheiros de seminário novamente, agora, em realidades bem distintas. Acompanhado de sua namorada, um deles me apresentou cordialmente a sua amada. “Este aqui é o Netinho”. Qual não foi a minha surpresa quando ela emendou em seguida, “Ah, aquele que o pai tinha uma mula?”. Definitivamente, família não é sobre nomes e números.
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