Eu tinha um colega que dizia: “Quando a gente abotoar o paletó de madeira e ficar diante de Deus, nossa vida passará como um filme”. Quando penso nisso, prefiro que seja um livro, pois todo mundo sabe que as adaptações cinematográficas nunca são 100% fiéis ao conteúdo original, e as histórias acabam tendo significados diferentes. Dedicar-se por uma vida inteira para tê-la descontextualizada em seu final? Cancelem a sessão.
É por isso que toda artimanha adotada com intuito de viver melhor pode ir para o ralo. Pessimismo? Não, estratégia. Já é dezembro, tempo de retrospecção, vamos lá.
O streaming entrega tudo o que você consumiu durante o ano. O jornalismo reúne os acontecimentos mais importantes (boa parte deles só sangue, suor e lágrimas). As redes sociais coletam seus momentos e sugerem que você os jogue no feed. E por aí vai, nossas informações estão no ar, então é uma boa época para serem utilizadas.
Essa viagem ao passado resgata também uma certa ansiedade, porque, com o que já foi vivenciado, desembarca também o desespero para justificar, qualificar e personalizar o que somos ou o que nos tornamos.
Dessa forma, o registro perdeu sua função e as lembranças são o que menos importa. Gravações que jamais serão vistas, fotos que ocupam apenas a memória do smartphone, músicas, apps e uma avalanche de informações que só utilizam espaço estão transformando a ideia de recordação e, consequentemente, de retrospectiva.
As fotos não se tornam mais peças numa estante. As músicas e demais conteúdos são consumidos por uma sugestão algorítmica, prejudicando a visão para o novo e impedindo descobertas fora do que a ferramenta acredita ser o gosto do consumidor. Registrar tornou-se uma função para retrospectar, apenas. O registro deveria ser para tocar, sentir, tornar a viver, verbos muitos mais charmosos.
E é assim que, naturalmente, sou levado ao livro e lamento a tal sessão programada para cada um de nós na terra dos pés juntos. O livro supera em vantagem. Sendo assim, quando Deus nos perguntasse o motivo de alguma ação, poderíamos ler, reler, virar a página, voltar ao prefácio, consultar as notas do editor, interpretar por pontos de vista diferentes. Agora, um filme? Vai saber a qualidade disso. Passará numa telona? Terá pipoca e espectadores? Tem que assistir a algum trailer antes?
Prefiro o silêncio do livro porque dá para ouvir os próprios pensamentos e compreender a razão de cada linha. E que felicidade vai ser para todos os que encontrarem em suas obras póstumas a verdadeira razão pela qual desejou viver, cercada de momentos incríveis, na contramão das placas algorítmicas.
Com certeza também prefiro a leitura de um bom livro e assim viajar por mundos, momentos e personagens criados somente na minha imaginação!!